A Questão Racial e a Experiência Traumática

Autores

  • Maria Cristina Francisco Instituto de Análise Bioenergética de São Paulo - IABSP

Resumo

Resumo: O racismo chega ao Brasil com a colonização e a escravidão, marcando a formação social pela violência dominadora sobre o outro e a terra, levando os povos originários e a população negra traficada do continente africano a uma experiência traumática coletiva, ainda hoje presente. Com o povo negro, a violência ocorre desde sua captura na terra natal, passa pela travessia atlântica nos navios negreiros, continua na chegada e permanência neste país, perpetuando-se de forma intergeracional, internalizando essa força que nos foi imposta, com consequências psicossociais desconhecidas, pois decorrem de acontecimentos muitas vezes não considerados. Vivemos uma pseudodemocracia racial no Brasil. O preconceito e a discriminação povoam o imaginário sobre o corpo indígena e o corpo negro de modo negativo, desqualificador, lesando a autoestima e a dignidade de crianças e adultos. O racismo é uma violência engendrada pela prática relacional de submetimento; causa perturbação biológica e emocional; pode matar. Em um ambiente hostil, é uma vivência de ameaça constante; ancora-se no corpo, causando sensação de mal-estar, sufoco; impede o direito de ir e vir. Subjetivamente humilha, envergonha, causa medo; impacta o processo identitário ao estabelecer a branquitude como padrão universal e ao negar qualquer outro referencial; impõe o apagamento de saberes ancestrais sobre a visão cósmica da vida, integrada e respeitosa com a terra, não calcada na exploração. Diante das consequências profundas sobre a mente e o corpo, o racismo é considerado um processo traumático de ordem biológica, emocional e comportamental. Caracteriza-se por sua longa duração e impacto sobre o corpo - são mais de 500 anos desde a invasão pelos colonizadores. Assim, a narrativa aqui proposta vem da experiência clínica psicológica, em anos de atendimento a pessoas negras em consultório, ministrando workshops e atuando no Instituto AMMA Psique e Negritude. O racismo é um mal. Devemos estar atentos a discursos, gestos, olhares; às práticas colonialistas que atingem a todas e todos, porém muito mais a quem é a pele-alvo. Na promoção da saúde, no campo clínico, a estratégia de acolher, reconhecer, nomear e elaborar os sintomas do trauma racial pode levar ao desbloqueio da energia colapsada e ampliar a compreensão das causas do sofrimento psicossocial. No campo coletivo, frente a uma sociedade marcada por violência e silenciamento - sintomaticamente percebidos no cansaço crônico das pessoas, correlacionado à aceleração cotidiana, ao distanciamento de si e ao fomento à competitividade -,  com a ampliação de conhecimento sobre a análise do contexto social, pode-se chegar a uma aprendizagem que envolva a pluralidade, a diversidade e a subjetividade presentes nas relações pessoais e organizacionais, trazendo novas possibilidades de saída da cronicidade e estagnação social. Começa pela escuta de si, focando a emancipação mental, a autonomia dos seres humanos. Sair do individualismo em direção a um convívio coletivo mais acolhedor frente a situações tão dolorosas e ameaçadoras de vida é um recurso. É um resultado ambicioso, um compromisso ético e social de justiça, um processo educador longo e necessário. Pode trazer desconforto, pois sairemos da nossa zona de comodismo, mas pode proporcionar mudanças e bem-estar a todos. Dar conhecimento a este ato que se tornou corriqueiro - a realidade do racismo como violência e trauma - leva à possibilidade de visibilizar e denunciar a violação dos direitos humanos e a desigualdade social que congela a população negra e indígena na base da pirâmide social.

 

Palavras-chave: racismo; trauma; corpo.

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Biografia do Autor

Maria Cristina Francisco, Instituto de Análise Bioenergética de São Paulo - IABSP

[1] Psicóloga clínica, CBT pelo Instituto de Análise Bioenergética de São Paulo - IABSP, psicoterapeuta somática pelo Instituto Brasileiro de Biossíntese - IBB-SP, membro do Instituto AMMA Psique e Negritude, membro da Federação Latino-Americana de Análise Bioenergética - FLAAB. Prêmio de melhor trabalho social com “Ponto de Encontro – entre mulheres e homens negros” (“Meeting Point – between black women and men”), no 24º IIBA Congresso Internacional de Análise Bioenergética, Toronto – Canadá, 2017. Autora do livro Olhos negros atravessaram o mar: o corpo negro em cena na análise corporal. Bioenergética e Biossíntese. E-mail: macrisfran@uol.com.br

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Publicado

2021-09-10

Como Citar

Francisco, M. C. (2021). A Questão Racial e a Experiência Traumática. REVISTA LATINO-AMERICANA DE PSICOLOGIA CORPORAL, 8(11), 22–37. Recuperado de https://psicorporal.emnuvens.com.br/rlapc/article/view/115